Ambivalência

A prova de que o corpo é mais inteligente que o coração:
quando caímos, ordena a cabeça:
"apoia com a mão"
quando é amor,
manda o peito:
"vai de ponta e esquece o chão".

Engasgo

Já engoli sapo
jiló
dente
caroço
e até formiga

Mas o mais difícil
ainda é engolir
o choro

Desajustados

Quem admira o universo que gira na pequena fresta de luz 
com cada poeirinha que entra 

e gira 


e flutua.


Quem conversa abobrinhas com o vento

Com os cachorros da casa e da rua
Com as crianças
e consigo mesmo

Quem comenta a beleza da chuva

Quem serenata ao tempo

Quem senta no chão

Anda descalço
Gargalha com o corpo
Sonha alto

Quem é poesia, antes de ser poeta


Lambuza-se de vida.


Jamais se enche.

As Linhas Tênues

Não confunda toda cor da liberdade com uma gaiola enfeitada
Nem a dosagem entre o remédio e o veneno
O estar acomodado com o estar pleno
O consentimento com a voz calada

Saiba distinguir a algazarra, o caos, da simples mistura

O charme do não-querer
A imaginação da loucura
O alto cargo do arbítrio de poder

Entenda a diferença entre objetificação e autonomia

Liquidação e necessidade
Satisfação e alegria
Sabedoria e idade

E, sobretudo, não prescinda do imprescindível:
O fervor da amizade com a euforia do amor
Que, de um coração partido, a dor 
é inconfundível.

Há jeito

Te amo feito bugre
Não tenho modos nem pudores para tal
Não sei ter e nem o quero

Grito feito menino
Pro mundo

(que anda precisado de flor atrás da orelha,
de cor pra dentro dela)

ouvir coisa bonita

Grito feito louca
Pro povo saber 

que de amor não ando sã

Se andasse, 
não seria amor, meu bem 

Mas se,

ainda assim, o fosse,
Não seria eu.

Ressaca

Por ela tomei jeito
Tomei juízo
Remédio
Vergonha
Chá de ervas

Não tomava mais pinga
Nem surra
Nem tomava em meus braços mais ninguém

Por amor, tomei um susto
Pois ela, depois de ter me entornado
Me tomado até o ultimo gole
Tomou outro rumo
Que tirou o meu

O aborto

Maria quis abortar
Quando estava prestes a nascer um afeto
Desses que ela nunca tivera
Desses grandes do tipo amor.
Ela não podia ter...
Não podia dar à luz àquele sentimento
Pois amor, quando nasce, dá muito trabalho se criado sozinho
Não podia... Iria alimentá-lo com o quê?
Esperança não enche barriga
Em Alberto o afeto nem chegou a querer crescer
Mas, Maria, mesmo lutando, não abortou
Em uma só noite foi gerado
E, ainda nesta,
Deu a luz
A um amor que Alberto não criou.

Acho que talvez

Por que, meu Deus, que quando a rua é curva eu quero reta,
Quando o Sol dia eu quero noite
Quando não há saída eu quero seta?

Por que quando há despedida eu quero a volta
Quando há entrega eu não quero mais
E quando se junta eu peço "solta"?

Pecado é querer demais
mas em meio à minha própria confusão
Eu só queria um pouco de paz. 

Palavrão

Tem palavra que é mais poesia que um livro inteiro
Que te faz sentir o que, há tempos, foi estancado
Que faz reabrir um machucadinho mal fechado
Um alegria verdadeira

Tem palavra que não se aguenta em um só conceito
Que é inteira demais pra comedir
Que, mesmo pequena, é imensa no sentir
Que alaga o olho e ressuscita o peito

Tem pessoa que é como palavra-poema
Que é mais poema do que pessoa.

Sobre sentir

O menino, que era um fingidor,
um poeta bem-acabado
queria ver sentido nas coisas
queria saber o motivo delas:

perguntou pra mãe
pro pai
pra tia
pro irmão

riram

foi-se embora todo doído o menino.

ele, que era danado pra sentir,
pra poesia
foi todo sentido.

Chorarê

Ando torta
Com encanamento, deveras, estourado
Ando vazando água pra tudo quanto é lado
Toda sentida
Toda sentindo
Ando comovida com o mundo
Com o passado
Com o futuro

Chorando no claro
Minguando no escuro
Mas foi sem querer
Não há motivo nem tristeza, eu juro

Com certeza, estourei um cano